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Narrativas da violência contra a mulher na mídia pernambucana atual expõem tema como questão social coletiva

Pesquisa analisou textos do Diario de Pernambuco, nos intervalos de 1969 a 1971 e 2014 a 2016

Por Eliza Brito

A objetificação da mulher, a moralização das coberturas e o hibridismo entre o discurso jornalístico e o policial e jurídico são características comuns às narrativas sobre a violência contra as mulheres produzidas em Pernambuco, nos intervalos de 1969 a 1971 e 2014 a 2016. Essa é uma das principais constatações da jornalista Amanda Diniz, em sua tese de doutorado “Violência, Substantivo Feminino: um estudo genealógico sobre as narrativas da violência contra as mulheres na mídia pernambucana”. O trabalho, que teve a orientação e coorientação respectivamente dos professores Isaltina Gomes e Diego Salcedo, ambos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi defendido em maio de 2023 no mesmo programa.

“O estudo permitiu concluir que, embora a luta pelos direitos das mulheres e contra a violência endereçada a elas tenha obtido avanços significativos nos últimos 50 anos e que haja, hoje em dia, o reconhecimento expresso do fenômeno da violência como uma chaga social relevante, as principais linhas de força identificadas nos anos 1960 ainda se mostram bastante presentes no discurso jornalístico dos anos 2015”, explicou a pesquisadora. Para ela, a maior exposição e a popularização do debate sobre a violência contra as mulheres na mídia não implicam, necessariamente, na existência de uma prática jornalística não violenta e combativa em relação à opressão e à desigualdade.

A pesquisadora defendeu, ainda, que a análise se aplica aos dias atuais, a partir do momento em que muitos construtos simbólicos, como valores e visões de mundo, são decorrência de processos antigos que se perpetuam. “Assim, quando olhamos para as maneiras como pintamos, em 2015, um caso de violência sexual contra uma menor de idade com as mesmas tintas que pintávamos em 1970, recorrendo à vida anterior da vítima, ao seu decoro sexual e suas condições de vida para ‘explicar’ o caso ao invés de olhar para as variáveis que a levaram à agressão e à morte, rapidamente vemos esse passado muito próximo de nós”, disse.

A escolha dos períodos de análise levou em consideração o fato daqueles terem sido momentos de grande acentuação discursiva das questões relacionadas aos direitos das mulheres e ao enfrentamento da violência de gênero nos textos jornalísticos. O primeiro recorte abrange a transição dos anos 1960 para 1970, em que as convenções de gênero e sexualidade passaram por grandes transformações a partir do fortalecimento dos movimentos feministas. Ao mesmo tempo, o Brasil vivia a ditadura civil-militar, que representou um período de recrudescimento de valores políticos e morais conservadores e de cerceamento de liberdades individuais. “Esse contraste torna a opção por analisar a acentuação discursiva das questões das mulheres e do fenômeno da violência nos textos jornalísticos durante o período ainda mais relevante, porque permite entrever como as lutas e os processos históricos se materializam nas produções simbólicas e na formação da memória discursiva da sociedade”, destacou a doutora.

Já o segundo momento, que compreende os anos de 2014 a 2016, foi um período marcado pelo reconhecimento crescente dos direitos das mulheres e pelo desenvolvimento paulatino de ações de enfrentamento à violência de gênero, “com destaque para a popularização da Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, e a promulgação da Lei 13.104/2015, a Lei do Feminicídio. Esses processos também produziram diversos efeitos sobre o discurso das mídias”, justificou. Sobre a decisão de utilizar o Diario de Pernambuco como fonte de pesquisa, Amanda Diniz explicou que a opção se deveu ao fato de esse ser o mais antigo jornal em circulação da América Latina e de ter sido, por isso, capaz de abordar um período extenso da história de Pernambuco.

A pesquisadora destacou que a principal diferença entre as coberturas jornalísticas do período de 1969 a 1971, em comparação com o segundo momento analisado, de 2014 a 2016, foi o fato de o fenômeno da violência, neste último triênio estudado, ter deixado de ser visto como produto de manifestações isoladas e ter passado a ser nomeado e, portanto, reconhecido como uma matéria relevante para a coletividade. “Parece-nos revelador o fato de a palavra ‘violência’ e a expressão ‘violência contra a mulher’ não figurarem em nenhuma das três nuvens que trazem as 25 palavras mais citadas nos anos 1969, 1970 e 1971. Chama a atenção também o fato de a palavra ‘violência’ ter sido mencionada poucas vezes na coluna ‘Termos Encontrados’ das planilhas referentes aos três anos do recorte”, exemplificou. No caso do segundo triênio estudado, o termo “violência” figurou entre as quatro palavras mais citadas em 2014 (144 vezes) e 2016 (202 vezes) e foi a mais recorrente em 2015, com 189 menções nos textos coletados.

ANÁLISE – Nos anos de 1969 a 1971, a pesquisadora constatou que as agressões se davam nos contextos familiar e sexual e era nítida uma quantidade relevante de ocorrências de preconceito e rebaixamento simbólico das mulheres. “De fato, entre os anos 1969 e 1971, salta aos olhos a circulação frequente de marcadores discursivos como ‘espôsa’, que figurou duas vezes entre as cinco e uma vez entre as dez palavras mais citadas nos três anos, ‘amante’, que esteve entre as dez mais citadas em dois dos três anos, e ‘marido’, que apareceu nas três nuvens de termos. Há que se apontar ainda a incidência de termos como ‘casa’ e ‘doméstica’, que também pertencem ao campo semântico das relações afetivas, familiares e/ou de coabitação”, detalhou.

Já nos anos de 2014 a 2016, o quantitativo de episódios de violência doméstica e intrafamiliar ainda é bastante expressivo, mas, proporcionalmente, menor do que no período de 1969 a 1971. Neste contexto, a pesquisa apontou que o fenômeno da violência contra as mulheres aparece nos discursos jornalísticos de forma mais ampla, mais difusa e mais perceptível em “microepisódios” da vida cotidiana. “Tem-se uma percepção bem mais clara da existência de expressões mais sofisticadas da violência como a violência moral, simbólica, religiosa, cibernética e patrimonial, para citar alguns exemplos, o que sugere a existência de uma maior consciência sobre a capilaridade do fenômeno do que existia na transição 1960/1970”, explicou.

Nos dois períodos analisados, vale frisar a recorrência da associação frequente entre os relatos de agressão e morte de mulheres na mídia e o léxico do universo policial e criminal, o que a pesquisadora avaliou como um movimento de intensa hibridização entre mídia e justiça. Outros aspectos presentes nos dois recortes temporais estudados, guardando-se as devidas proporções e particularidades de cada época, foram o alto número de agressões sexuais e o destaque midiático a esses casos. “Essa ênfase midiática em violências de natureza sexual frequentemente apareceu ligada a um processo de objetificação do corpo feminino e de sexualização precoce de meninas e mulheres, fenômeno recorrentemente abordado, repercutido e, muitas vezes, ‘inflado’ pela mídia em função da comoção que o assunto costuma gerar na opinião pública”, ressaltou Amanda.

METODOLOGIA – Para a produção da pesquisa, Amanda Diniz coletou 1.780 textos jornalísticos divulgados no jornal Diario de Pernambuco, de 1969 a 1971 e de 2014 a 2016, disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e na plataforma do Diario de Pernambuco Impresso, pertencente ao próprio jornal. O material foi catalogado em planilhas, que reuniram os textos encontrados em um único arquivo para cada ano estudado. Os textos foram analisados à luz de conceitos da Genealogia trabalhada por Nietzsche e por Foucault e da Análise de Discurso de filiação francesa, desenvolvida por autores como Pêcheux, Maingueneau e Orlandi.

“Acredito que a pesquisa contribui, em primeiro plano, para analisar a atuação do jornalismo nas últimas décadas a partir de lentes críticas, demonstrando como o discurso jornalístico, um importante campo discursivo da contemporaneidade, pode se colocar em um movimento pendular entre, de um lado, discutir temas controversos para tirar preconceitos e violências da invisibilidade e, do outro, incorrer em práticas sensacionalistas e potencialmente revitimizadoras”, defendeu a doutora. Para ela, as recorrências nos discursos jornalísticos, em períodos tão distantes, são um alerta. “Precisamos reconhecer o quanto já caminhamos, claro, mas também precisamos olhar para trás para entender por que ainda falta tanto a caminhar”, finalizou.

Mais informações
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE
(81) 2126.8960

secretaria.ppgcom@ufpe.br 

Amanda Diniz
amandatdemelo@gmail.com 

Data da última modificação: 20/03/2024, 09:19