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Pesquisas decoloniais e questões de gênero no Brasil
Especial
Embora o Brasil seja considerado um país independente, as marcas deixadas pelo período colonial se perpetuam até os dias atuais. A partir de algumas teorizações, podemos conceber a colonialidade como sendo constituída por três camadas: Ser, Saber e Poder. Nesse contexto, de modo a entender o Poder, a pesquisa decolonial questiona como o Ser e o Saber são construídos e legitimados em um mundo marcado por estas heranças coloniais. Ao resgatar a voz e o protagonismo de pessoas que ainda carregam os traços da colonialidade, a abordagem decolonial desafia estruturas que historicamente invisibilizam ou desvalorizam suas experiências e conhecimentos.
A interseccionalidade entre gênero e colonialidade revela como as identidades de gênero são construídas e hierarquizadas a partir de marcadores sociais como raça, classe e etnia. As mulheres, particularmente, sofrem uma dupla opressão: por serem mulheres e por pertencerem a grupos marginalizados historicamente. Dentro das questões que englobam o gênero, pode-se pontuar ainda experiências únicas ao se fazer o recorte de raça, uma vez que mulheres negras, indígenas e quilombolas enfrentam desafios variados decorrentes dos espaços desvalorizados que ocupam na sociedade.
Nesse sentido, dados da PNAD Contínua de 2022 apontam que a população preta e parda forma 56% da população brasileira total, com 28% desta porcentagem sendo composta por mulheres negras e pardas, o que traz à tona a conclusão de que, mesmo sendo parte da maioria de sujeitos no país, essas mulheres seguem sofrendo discriminações. Por sua vez, a população indígena apenas recentemente conquistou uma maior visibilidade, pois apenas no Censo Demográfico de 2022, com uma reformulação dos seus questionários aliada aos movimentos de retomada ocorridos por meio das lideranças indígenas, houve uma maior expressão do total aproximado de indivíduos indígenas no Brasil, sendo este de 1,7 milhão de indivíduos, formando 0,83% da população total do país. É um número diferente daquele que foi computado em 2010, último levantamento em que apareceram dados censitários deste tipo para esta população, ano em que foram apontados 817,9 mil indígenas declarados.
A exemplo dos desafios mencionados anteriormente, na Educação, o Ministério da Igualdade Racial (MIR) destaca a diferença entre as taxas de analfabetismo de mulheres negras e de mulheres brancas brasileiras, no que eram formadas pelos percentuais de 6,9% e de 3,4% respectivamente no ano de 2022. Nessa mesma perspectiva, agora olhando para o Ensino Superior, a disparidade ainda é existente: 14,7% das mulheres negras tinham concluído esse nível de escolaridade, ante 29% das mulheres brancas. Em relação às mulheres indígenas, segundo o Inep, a taxa de indivíduos no Ensino Superior era de 0,5% no ano de 2018.
Esse grave quadro de descaso é pertinente ainda nas taxas de saúde; fome; violências; trabalho, renda e pobreza; habitação; e terra e território. Como um recorte dessas negligências, seguem dados alarmantes: segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, apenas no ano de 2023, somando-se as modalidades consumadas e tentadas de homicídio, feminicídio, agressões em contexto de violência doméstica, ameaça, perseguição, violência psicológica e estupro, foram computados 1,2 milhões de registros de violências contra mulheres no Brasil, dos quais 1.467 foram casos de feminicídio, com 63,6% destas vítimas sendo mulheres negras. No caso da população indígena, de acordo com o Datasus, entre 2000 e 2020 houve um aumento de 167% nos números de feminicídio de mulheres indígenas em suas próprias residências. Além disso, conforme o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, entre 2007 e 2017, foram registradas 8.221 notificações de casos de violência contra mulheres indígenas. Ainda, nos últimos 20 anos, observando-se o homicídio com armas de fogo, os casos de mulheres indígenas assassinadas aumentou em 79%, seguido das mulheres negras, com 64% .
Somando-se aos dados apresentados, vale ressaltar que, pela ótica do Atlas da Violência de 2023, fonte do Ipea, entre os anos de 2020 e 2021 a taxa de homicídio de pessoas indígenas aumentou em relação à taxa de homicídio total brasileira, com índices de assassinato de, respectivamente para cada ano, 18,8% de indígenas para cada 193 indivíduos e de 19,2% para cada 200 sujeitos.
Diante desse cenário, percebe-se a urgência que as pesquisas decoloniais carregam, sendo imbuídas da necessidade de se repensar os locais ocupados por esses indivíduos e, neste foco, por essas mulheres, permitindo que sejam organizadas as intervenções diante desses números lamentáveis. Entretanto, apesar dos avanços, essas pesquisas ainda enfrentam diversos desafios, como a resistência de paradigmas tradicionais e a falta de investimento em iniciativas do ramo que abordem temas como gênero e raça. No entanto, a perspectiva para esses estudos é promissora diante do surgimento de novas gerações de pesquisadoras e da crescente visibilidade das questões decoloniais no Brasil.
(ANPR — Associação Nacional dos Procuradores da República, 2022)

Acampamento Terra Livre, 2022
Tomando como referência as questões mencionadas acima, professores do Departamento de Psicologia propuseram um projeto com a missão de ampliar o conhecimento sobre o tema e trazer à tona uma pauta que muitas vezes é negligenciada: “Ser, Saber e Poder como Eixos de Análise em Pesquisas Qualitativas Decoloniais: reflexões sobre metodologias de pesquisa sobre mulheres e política". A iniciativa cultiva um espaço de aprendizado e discussão sobre metodologias qualitativas decoloniais.
O projeto, que foi desenvolvido no formato de curso, aconteceu de forma presencial no auditório do PPGPsi na UFPE entre novembro e dezembro de 2023 e atingiu não apenas a comunidade acadêmica como também o público externo. O curso foi conduzido pela professora Raissa Barbosa, especialista no tema, e coordenado pelo professor Luís Felipe Rios do Nascimento. A equipe incluiu também estudantes voluntários que auxiliaram na organização e logística.
A ação teve como objetivo central desenvolver e aprimorar metodologias qualitativas que desafiem as perspectivas eurocêntricas e colonialistas nos estudos sobre mulheres e política e visou, também, proporcionar um curso introdutório sobre as abordagens decoloniais, apresentando ferramentas teóricas que possibilitam uma análise crítica das estruturas de poder que permeiam as relações de gênero no Brasil. Essa abordagem é pautada na interseção entre desigualdades sociais e de gênero, procurando enfatizar o impacto das emergências de novas lideranças femininas em esferas políticas.
(Equipe do projeto, 2023)

Encontro do projeto "Ser, Saber e Poder como Eixos de Análise em Pesquisas Qualitativas Decoloniais”, 2023
O projeto de extensão conduzido pelo professor Luís Felipe Rios do Nascimento destaca a importância de uma abordagem decolonial no estudo das mulheres e da política, enfatizando a necessidade de métodos de pesquisa que reflitam a diversidade de experiências e saberes das mulheres brasileiras. O curso trouxe uma proposta inovadora e essencial para o cenário acadêmico e político atual, reforçando a relevância da decolonialidade como caminho para a inclusão e para o desenvolvimento de políticas públicas mais justas.
Os principais módulos incluíram discussões sobre as relações entre ciência e justiça social; o papel das mulheres como sujeitos políticos; e a relevância dos eixos de Ser, Saber e Poder na análise de dados qualitativos decoloniais. O módulo que abordou questões de representatividade e ocupação dos espaços públicos explorou as contribuições de autoras como Lélia Gonzalez, que propôs o conceito de “amefricanidade” para discutir racismo e sexismo a partir de uma perspectiva latino-americana e interseccional. Esta análise é importante, pois examina o papel das mulheres negras e indígenas, que desafiam a estrutura política tradicional com novas propostas de governança e práticas políticas mais inclusivas.
(Ministério da Cultura, 2019)

Lélia Gonzalez, [s.d]
Ao final, o curso pretendeu fazer com que os participantes obtivessem não apenas conhecimento teórico, mas também uma consciência crítica das estruturas de poder que moldam a sociedade. Assim, a UFPE mostra seu compromisso no desenvolvimento de metodologias decoloniais, que visam expandir o escopo dos estudos qualitativos e desafiar as tradições científicas hegemônicas, abrindo caminhos para uma ciência mais representativa e inclusiva.