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“Apresentar um número baixo de casos ou óbitos por vários meses não significa estar em situação de controle”, esclarece Paulo Zingano.

Professor da UFRGS esclarece debate sobre medidas de controle contra a Covid-19 em estados do Brasil e pede maior revisão e literatura sobre a doença: ‘deveria ser explorado de melhor forma’.

Paulo Zingano - Professor da UFRGS

Paulo Zingano - Professor da UFRGS

Projeto Covid-19 e a Matemática das Epidemias - Fazendo a Ponte entre Ciência e Sociedade 

Síntese: Camila Sousa e Júlia Lyra

Coordenação: Felipe Wergete Cruz

 

Finalizando a série de reportagens - esta, a terceira - com pesquisadores de diferentes Universidades do Brasil que passaram a se debruçar sobre o enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, o projeto Covid-19 e a Matemática das Epidemias traz, nesta semana, o professor Paulo Zingano. 

Zingano é bacharel em Matemática pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1982), possui Mestrado em Matemática pela Universidade de Brasília (1986) e Doutorado em Matemática pelo Courant Institute, New York University (1990), com pós-doutorado na Stanford University (1991). 

Na entrevista, o matemático traça uma análise esmiuçada sobre algumas medidas de enfrentamento contra a Covid-19 adotadas pelos governos, a nível municipal e federal. Além disso, Zingano também detalha como sua área de interesse em Equações diferenciais parciais (EDPs), que modelam fenômenos físicos, auxiliou no estudo da doença, traçando um paralelo com os desafios para acompanhar de perto o comportamento do novo coronavírus. 

 

1) Levando em consideração teus estudos em EDPs (Equações Diferenciais Parciais), que modelam fenômenos físicos, como a experiência nesse ramo de estudo te auxiliou na compreensão dos problemas relacionados à Covid-19?

Diretamente não foi muito, porque os modelos de Covid que utilizamos para examinar/monitorar a evolução da epidemia eram baseados em EDOs (Equações Diferenciais Ordinárias) e não em EDPs, embora estas também pudessem ser utilizadas no problema. Mas a escassez de dados oficiais e sua baixa qualidade nos forçaram a escolher modelos matemáticos mais modestos, com poucas variáveis e parâmetros a serem determinados, por isso a escolha por EDOs (que são tecnicamente muito mais simples) - mais exatamente, modelos SEIR determinísticos sem distribuições espaciais. Ainda assim, a experiência com EDPs evolutivas acabou sendo útil, indiretamente, porque auxiliou no desenvolvimento de algoritmos para a determinação dos parâmetros-chaves (como taxas de transmissão e letalidade) e de indicadores como números de reprodução, índices de prevalência e de imunidade rebanho. 

 

2) Você tem uma larga expertise nesta área de estudos em EDPs e, desde o início da pandemia, decidiu se debruçar sobre o coronavírus. O que te motivou a encarar este desafio?

O principal motivo foi o fato de a Covid ter-se transformado rapidamente em um dos problemas mais sérios e importantes do momento, no Brasil e no mundo, capaz de ceifar grande número de vidas e impor sérias dificuldades à economia, trazendo assim, por vias diversas, enormes riscos às pessoas e à sociedade. Sendo um problema de forte natureza matemática, aparentemente controlável, é natural que muitos matemáticos e estatísticos, além de vários outros especialistas, deixassem seus problemas tradicionais de lado e se adicionassem a epidemiologistas para auxiliarem no entendimento do manejo correto da epidemia. 

Às administrações de universidades e institutos (reitores, pró-reitores, etc) cabiam, obviamente, a coordenação desses esforços e sua integração harmonizada com secretarias e autoridades de saúde, e destas com aquelas, o que infelizmente aconteceu de forma muito pobre, quando aconteceu, não só no país como também no exterior. Isso explica em parte o mau manejo da crise observado em quase todo o mundo e visões equivocadas relatadas inúmeras vezes na mídia por autoridades.

Para citar apenas um exemplo, em fins de abril ou início de maio o governador do RS, Eduardo Leite, solicitou a colaboração da população para novo endurecimento das medidas de controle no estado, indicando ser um último esforço necessário para não se ter de recorrer a tais medidas novamente no futuro. Tivesse havido boa comunicação com a academia, o governador teria sabido já naquela época que tal expectativa era completamente equivocada e infundada.

 

3) O que mais lhe chamou a atenção durante este período de estudos? O vírus, do ponto de vista biológico, quando infecta um organismo, não adere a um padrão - vide casos sintomáticos, assintomáticos, graves e não graves - ou do ponto de vista matemático, como ele se comporta, a partir do que você percebeu/pôde observar?

Isso é verdadeiro separadamente por indivíduo, mas quando se observa coletivamente, ou seja, o comportamento médio da Covid, percebe-se a existência de padrões razoavelmente confiáveis, o que permite a aplicação de métodos matemáticos ou estatísticos diversos com bastante sucesso. Esses padrões em geral não são fixos e variam com o tempo, por diversas razões, devendo assim ser constantemente avaliados. Isso é feito a partir de dados (como número de novos casos e óbitos) minimamente confiáveis, que são responsabilidade de autoridades e agências de saúde. 

Quanto às observações que fizemos, posso citar vários exemplos, dividindo em 2 partes:

De um ponto de vista matemático geral, algumas observações que podem ser feitas são: 

 

(a) com apenas intervenções não farmacêuticas (distanciamento, restrições de mobilidade, uso de máscaras, cuidados com higiene, etc) parece possível atingir um regime de controle da epidemia (Rt < 1) com número reduzido de óbitos - sem recorrer a medidas extremas como lockdown - se a intervenção for implementada rapidamente, desde o início, e sempre mantida (com possibilidade de flexibilizações periódicas, mas nunca eliminação).

A necessidade de lockdown em países como Itália, Espanha, França e Reino Unido foi resultado do péssimo entendimento e manejo inicial da epidemia. Além disso, nesses países o lockdown não precisava ter sido tão longo (2 meses!), e a flexibilização que se seguiu não podia ter sido tão ampla (e, por isso, desastrosa).

 

(b) é preciso haver coordenação das medidas interventoras em escala global. 

Por exemplo, cidades ou regiões vizinhas devem sincronizar suas medidas de intervenção, independentemente de pertencerem a estados ou países diferentes. Em países como EUA ou Brasil, com fraquíssima coordenação federal diante da crise, a epidemia pôde propagarse dos primeiros focos ao país inteiro, à vontade, situação que continua até hoje. O mesmo fracasso na coordenação global pelo Ministério da Saúde do governo brasileiro nas medidas de intervenção não farmacêutica pode ser observado novamente com respeito à futura implementação de medidas farmacêuticas (vacina), nos dias atuais. 

 

(c) inquéritos sorológicos são importantes (se bem aplicados), mas não absolutos. 

Por exemplo, o inquérito EpiCovid19 (conduzido por várias universidades sob a coordenação da UFPel) apontou um fator de subestimação de casos de apenas 10% para o RS na sua fase 8 (4-6 de setembro), um valor certamente errado (e provavelmente muito errado). Na verdade, não é sequer claro o que foi exatamente medido no inquérito, em suas várias fases, no âmbito do RS ou do país. 

 

(d) o processo de controle da Covid-19 por medidas não farmacêuticas é demorado e por isso exige planejamento de longo prazo e constante esclarecimento e engajamento da população.

Por ser longo, as medidas devem ser idealmente tão leves quanto possível, de modo a se poder contar com a colaboração da população em todo o período e ter menos impacto na economia. Porém, procedimentos leves dificilmente reduzem números de reprodução (digamos, semanal) a valores inferiores a 0.9, podendo exigir assim até mais de um ano para a eliminação efetiva da epidemia.

 

(e) apresentar número baixo de casos ou óbitos por várias semanas ou meses não significa estar em situação de controle da epidemia. 

Por exemplo, após os primeiros casos de Covid em meados de março, Florianópolis registrava menos de 15 óbitos até o final de junho, enquanto os números de reprodução mantinham-se acima do valor crítico 1 já a partir de fins de abril, indicando que, apesar dos reduzidos números de casos e óbitos, a epidemia não estava controlada na cidade.

No Uruguai, após os primeiros casos em março, o número de óbitos conseguia ser inferior a 80 no final de novembro, mas os números de reprodução já superavam 1 antes do final de junho, e assim se mantiveram, demonstrando a falta de controle da epidemia, ao contrário do que muitos acreditavam.

Fica assim evidente que o monitoramento de uma epidemia requer a análise de vários indicadores, nenhum sendo suficiente isoladamente. O mesmo vale para números de reprodução, que podem ser definidos de vários modos, com significados diferentes, conforme acompanhem diferentes subpopulações de interesse. Isso deveria ser explorado de melhor forma na literatura.

Sobre resultados específicos, muitos foram obtidos, como por exemplo: 

 

(f) a subnotificação de casos de Covid pode ser corrigida em média por um fator em torno de 5, em geral. 

Um valor 5 significa: para cada caso notificado deve haver outros 4 (não notificados). Esse valor é consistente com a observação experimental de que entre 80% e 90% dos indivíduos infectados são assintomáticos ou apresentam apenas sintomas leves. Valores superiores também ocorrem, como por exemplo 6 (Itália, agosto/2020), 7 (cidade de São Paulo, agosto/2020) e 8 (Lombardia, agosto/2020). 

 

(g) o valor da imunidade rebanho (IR) deve ficar entre 50% e 80%, conforme a região e os cuidados que a população toma. 

O valor de IR está relacionado à taxa de transmissão da Covid (digamos, b), aumentando com esta; por exemplo, IR = 0.80 corresponde a b = 0.35 (ou seja, 35% ao dia da fração q da população de infectados ativos, sendo q = S/N a fração da população total que se encontra suscetível à doença), valor observado anteriormente a medidas de controle.

Manter cuidados básicos de higiene e distanciamento pode ser suficiente para reduzir b a valores próximos a 0.15, correspondendo a IR = 50%. 

Regiões (países, cidades, etc) diferentes apresentam tipicamente taxas de transmissão diferentes, de modo a variar o valor de IR conforme a região. 

 

(h) o número de infectados ativos (ou seja, indivíduos transmitindo a Covid) ainda é alto em muitos países. 

Supondo um fator de subnotificação razoavelmente realista (5), o total estimado de indivíduos transmissores corresponderia atualmente, nas regiões a seguir, às seguintes frações da população total:

 

Brasil: 1.0%

Argentina: 1.2% 

Uruguai: 0.2 %

EUA: 3.3%

França: 2.1%

Itália: 2.9%

 

Porto Alegre: 2.3%

Recife: 0.73%

São Paulo (capital): 0.75%

Rio de Janeiro (capital): 0.74%

Manaus: 0.89%

 

Observação: as estimativas acima foram calculadas a partir de um modelo SEIR supondo fator de subnotificação 5. Para níveis de subnotificação maiores, os valores obtidos teriam sido maiores do que os aqui indicados. Este deve ser o caso de Brasil, Recife, SP, RJ e Manaus, por termos utilizado dados disponíveis no site do Ministério da Saúde, onde o nível de subnotificação é provavelmente maior que 5.

 

(i) a fração da população que já contraiu o vírus (SARS-Cov-2) seria atualmente a seguinte – supondo-se, novamente, fator de subnotificação conservador (5): 

Brasil: 15.3%

Argentina: 15.8%

Uruguai: 1.1%

EUA: 23.0%

França: 17.3%

Itália: 14.1%

 

Porto Alegre: 21.3%

Recife: 12.3%

São Paulo (capital): 14.9%

Rio de Janeiro (capital): 10.0%

Manaus: 16.2%

 

Observação: as estimativas acima foram calculadas a partir de um modelo SEIR supondo fator de subnotificação 5. Para níveis de subnotificação maiores, os resultados obtidos seriam maiores do que os aqui indicados.

Novamente, este deve ser o caso de (pelo menos) Brasil, Recife, SP, RJ e Manaus, por termos utilizado dados disponíveis no site do Ministério da Saúde, onde o nível de subnotificação é provavelmente maior.

 

(j) o valor estimado para o número de reprodução efetivo (correspondente a uma janela temporal de 14 dias) da Covid-19 seria atualmente o seguinte, nas regiões abaixo (valores maiores que 1 indicam descontrole da epidemia):

 

Brasil: 1.28

Argentina: 0.80

Uruguai: 2.00

USA: 1.25

França: 0.62

Itália: 0.91 

 

Porto Alegre: 1.30

Recife: 1.63

São Paulo (capital): 1.17

Rio de Janeiro (capital): 1.40

Manaus: 0.99

 

Observação: as estimativas acima foram calculadas a partir de um modelo SEIR desconsiderando possível represamento dos dados reportados (que pode ser significativo, especialmente na última quinzena). Represamentos são corrigidos por procedimentos empíricos simples e fáceis de aplicar, mas requerem o exame do histórico recente (15D) de variações nos dados reportados, que não conseguimos obter por falta de tempo. Represamentos não compensados levam a resultados subestimados de números de reprodução, o que pode ter afetado alguns resultados acima.

 

Para baixar a entrevista em PDF por favor clique aqui. 

 

 

 

Data da última modificação: 11/12/2020, 13:55