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Meninos, eu vi

Jaime Gusmão Filho, professor emérito da UFPE
 
Certamente foi um motivo de muita alegria dos deuses ver que, aqui, se criou a Universidade do Recife, hoje Universidade Federal de Pernambuco. Fundada em 1946, ela veio após a 2ª Guerra Mundial, quando o País procurava novos rumos para seu desenvolvimento. Quatro anos depois, eu passei no vestibular para a Escola de Engenharia, entrei na universidade e lá permaneço até hoje.
 
Uma multidão de fatos, nomes, histórias e acontecimentos desfilam agora, diante de mim. Mostram que os caminhos do homem nem sempre são palmilhados conforme sua vontade e seus ideais. Mas mostram, também, como uma instituição é feita de muito esforço, persistência, vontade, garra e até sacrifício. Sou testemunha dessa história. Posso também dizer uma expressão muito usada pelos mais velhos, falando aos mais novos: “...Meninos, eu vi.”
 
... Meninos, eu vi esta universidade crescer. No início, era constituída das faculdades de direito, engenharia, medicina, belas artes, filosofia e outras menores, algumas com mais de 50 anos. Vi a construção do primeiro prédio da Cidade Universitária – um descampado imenso, longe da cidade, sem transporte nem edificações por perto. Era o prédio de medicina e hospital universitário – majestoso, grande, que acompanhei de perto a construção de sua fundação. Depois outros vieram, consolidando o câmpus com ruas calçadas, saneamento, iluminação, telefonia, comunicação digital.
 
... Meninos, eu vi a criação de vários órgãos de apoio à universidade, como a Prefeitura da Cidade Universitária, a Editora Universitária, a Casa do Estudante, o Centro de Educação Física e o Colégio de Aplicação.
 
... Meninos, eu vi a insegurança de dirigentes universitários diante da missão recebida, a vontade de acertar, os louros que chegavam tarde demais, quando muitos não eram mais vivos. Mas vi, também, a dedicação gratificante do dever cumprido, quando nada parecia acontecer.
 
... Meninos, eu vi as greves dos alunos contra professores injustos, e a favor de laboratórios, equipamentos e aulas práticas, que então não havia. Mas vi, também, eles tomarem as escolas, impedindo os dirigentes de entrar, e o reitor ouvindo os alunos, sentado na calçada.
 
... Meninos, eu vi a tragédia da ditadura militar abater-se sobre a universidade. Seus professores mais notáveis cassados, os estudantes procurados, presos, fuzilados, o conteúdo das aulas censurado, o corpo discente infiltrado de oficiais. A formatura dos alunos, feita com soldados armados de fuzil, proibidos os discursos, limitando-se apenas à declaração dos formandos e ao fim encerrar a sessão.
 
... Meninos, eu vi a universidade mudar. Vi serem criados os departamentos, com o novo modelo que se implantou. Vi muitos professores antigos desapontados com a criação dos ciclos básico e profissional, sendo obrigados a ir para os departamentos de sua especialidade, longe das faculdades, esperando apenas se aposentar. Mas eu também vi os novos professores se prepararem com mestrado e doutorado, dando tempo integral ao ensino, pesquisa e extensão – um capital humano excepcional, para servir à sociedade. Vi os laboratórios serem criados, no início poucos, pequenos, quase sem movimento, e depois amplos, completos, confortáveis, cheios de alunos e de muito trabalho.
 
... Meninos, eu vi os professores fazerem greve, como os alunos faziam antigamente. No início da universidade, o salário dos professores era igual ao de um ministro de Estado. A primeira greve era muito tímida, tendo apenas alguns professores. A segunda já era maior que a primeira, a terceira, a quarta, e assim por diante. Hoje, os professores estão cientes da importância de sua missão, e exigem inutilmente um salário condigno.
 
... Meninos, eu vi a universidade lutar pela democracia contra seus dirigentes, as campanhas pela eleição direta do reitor. A reação dos que estavam no poder, dando peso desigual ao voto dos professores, funcionários e alunos. A vitória, que afinal conquistamos, de ter o reitor eleito democraticamente.
 
Tudo isto – e muito mais – nós vimos, passamos e vivemos. Hoje a universidade é a instituição brasileira que mais tem exercido a auto-crítica publicamente, sem corporativismos, sem biombos, sem esconder seus desvios. Presta um serviço inegável ao Brasil, quando faz profissionais, cidadãos e gente preparada para servi-lo. Como disse Brecht, não basta saber que Prometeu teve a liberdade. Mas, também, como eu agora, sentir-se feliz com o prazer de libertá-lo.
 
Publicado em 24.08.2006 no Jornal do Commercio
Data da última modificação: 31/10/2016, 11:32