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Imagens distintas de nação tornam inconciliáveis posicionamentos sobre as ações afirmativas no país

Pesquisa foi defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e orientada pela professora Eliane Veras Soares

Por Renata Reynaldo

O embasamento teórico do debate em torno das medidas que o Estado adota para eliminar desigualdades históricas, garantir oportunidades iguais a todos os cidadãos, além de compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização - as chamadas ações afirmativas - aponta diferenças inconciliáveis entre os que defendem e os que contestam tais políticas. E, na análise do doutor em Sociologia Aristeu Portela Júnior, a substância desse confronto reside na imagem de nação que cada um dos lados constrói. Segundo o autor da tese Ações afirmativas com recorte racial no ensino superior e disputas de identidade nacional no Brasil, "a noção de 'mito da democracia racial', ao mesmo tempo que aproxima, distancia os dois discursos de identidade nacional, o que impossibilita a conciliação dessas leituras, dados os seus posicionamentos acerca das relações raciais amplamente divergentes".

Na pesquisa, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE e orientada pela professora Eliane Veras Soares, Aristeu aponta que o discurso de identidade nacional dos textos contrários às ações afirmativas acentua uma 'memória histórica' de uma nação fundada na mestiçagem, entendida como sinal de uma população indistinguível em termos raciais, enquanto que os textos favoráveis às ações inclusivas enfatizam a escravização violentadora da população negra, além da presença marcante do racismo como um “caráter nacional” marcado pela negação da existência desses problemas.

Como argumento para a defesa da tese, o autor afirma que “os elementos definidores desse discurso de identidade nacional, presente nos textos contrários às ações afirmativas, foram construídos em diálogo com as formulações de Gilberto Freyre acerca das relações raciais no Brasil, mas que adquiriram sua forma atual a partir do Seminário Multiculturalismo e Racismo, de 1996, e, sobretudo, nas obras de Peter Fry e Yvonne Maggie”, e completa: “A marca do pensamento desses últimos é a revitalização e a ressignificação do mito da democracia racial, agora visto como ideal civilizacional a ser alcançado”.

PESQUISA - A pesquisa recaiu sobre textos opinativos publicados no Jornal O Globo entre os anos de 2004 e 2012, período temporal que representa, respectivamente, a primeira iniciativa de implementação de uma política de ação afirmativa em uma universidade federal, a Universidade de Brasília (UnB), e a aprovação da Lei nº 12.711/2012, que ficou conhecida como Lei de Cotas. “A mídia foi, durante esse período, um ambiente por excelência para o questionamento (principalmente) ou a defesa dessas políticas; daí ela se constituir como um locus importante para observamos esse debate”, explica o autor.

Com o propósito de analisar o processo de construção do significado de símbolos como o “13 de maio”, a “Lei Áurea” ou a “Abolição”, o sociólogo identificou distintas perspectivas de nação que podem ser e, como atesta, “foram construídas”. Para o autor, o que o interessou na pesquisa foi justamente analisar um processo “de disputa de narrativas, de projetos e discursos de identidades nacionais no Brasil”. Na tese, Aristeu aponta, entre outras referências, que os diálogos interdiscursivos que orientaram a representação de nação presente nos textos favoráveis às ações afirmativas remetem ao Projeto Unesco sobre relações raciais no Brasil, e à caracterização da democracia racial como “mito”, por parte de Florestan Fernandes e do movimento negro, bem como à reflexão de Abdias Nascimento e Kabengele Munanga sobre as especificidades do racismo no Brasil.

Para historiar o posicionamento do movimento negro no processo reivindicatório em prol das ações afirmativas, o sociólogo resgata a atuação da Frente Negra Brasileira (FNB), criada em 1931, e o Teatro Experimental do Negro (TEN), de 1944, “ambos com atuação que associava a educação e o combate aos preconceitos e discriminações raciais”. Segundo Aristeu, nos casos abordados, “a educação aparece como uma via para se contestar, de um lado, os padrões de comportamento herdados do período escravocrata e reinventados no período republicano, que perpetuam no tempo a subalternização cotidiana da população negra; e, de outro, as imagens acerca da nação, da história do Brasil, que tendem a subestimar ou silenciar a contribuição dos negros para a constituição do país”.

Em contraponto, o autor ressalta que a questão da segregação racial não se colocava em pauta quando da implantação das universidades brasileiras. Conforme discorre na tese, a disputa ideológica em torno do ensino superior naquele momento era basicamente um debate em torno da formação de elites dirigentes para o país, de formação de quadros capazes de conduzir a nação para os caminhos que tais camadas privilegiadas julgavam adequado. “Isto é, a democratização do acesso às universidades não parecia ainda se constituir em pauta de reivindicação da classe política e intelectual brasileira – embora, nas formulações oriundas do TEN já indiquem a compreensão da exclusão dos negros desses espaços”, destaca.

ANÁLISES - Segundo reflete Aristeu Portela, em suas considerações finais da tese, no que tange aos discursos de identidade nacional, de fato há mais divergências do que convergências entre os polos favorável e contrário às políticas de ação afirmativa com recorte racial no ensino superior. “Ambos defendem que a sociedade brasileira possui especificidades no seu padrão de relações raciais, mas o modo como cada posição compreende tais elementos peculiares é completamente distinta, e aponta para narrativas nacionais que considero, sim, antagônicas”. E, para ilustrar esses antagonismos, ele cita o racismo e o reconhecimento da desigualdade. 

Na tese, o autor analisa que os textos contrários às ações afirmativas, publicados em O Globo, apresentam um reconhecimento condicionado ou minimizado quanto ao racismo no Brasil, ao passo que os textos favoráveis são marcados por uma reafirmação enfática da sua existência. Já no caso do reconhecimento das desigualdades, o autor afirma que há uma distinção semelhante, nas suas consequências, e talvez ainda mais diretamente perceptível. “Opositores das ações afirmativas tendem a negar a importância da raça como fator delimitador de desigualdades e condicionante do acesso à universidade pública, considerando a classe social como o principal (ou único) aspecto considerado relevante”, afirma. Do outro lado, segundo Aristeu, “os defensores das ações afirmativas argumentam que a raça é um elemento condicionante das posições sociais e das oportunidades dos indivíduos na sociedade brasileira, sendo necessário, portanto, atacar esse problema específico, que não se confunde necessariamente com a questão da pobreza”.

Mais informações

Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE
(81) 2126.8285/2126.8284
ppgs.ufpe@gmail.com

Aristeu Portela Júnior
aristeu.portela@gmail.com

Data da última modificação: 16/11/2018, 17:05