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A Boa Vista de outrora

Por Gilson Edmar, vice-reitor da UFPE
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A Boa Vista de outrora tinha vários encantos: suas ruas, suas praças, o rio a lhe banhar, a cantiga dos vendedores de frutas ("chora menina pra comer pitomba") e dos vendedores de tudo ("chá preto e pente"). Era famoso o "quem me quer", na Rua da Aurora, onde ocorriam as paqueras nas tardes dos domingos. As suas pensões de estudantes se localizavam na Rua Barão de São Borja, onde também se instalou o Cine Politeama, também chamado de Polipulga, por motivos óbvios, onde assistíamos aos filmes seriados, precursores das novelas televisivas. Com o fechamento do cinema, o local foi adaptado para funcionar a Rádio Tamandaré, que proporcionava aos habitantes da área vários programas de auditório, bastante frequentados. No final do ano, na época natalina, a atração da rádio era o pastoril, com grande torcida para o cordão azul e para o encarnado. Muitas destas recordações me foram passadas por Jarbas Maciel, outro morador do bairro. O Parque era outra opção de lazer, tanto quando funcionava como cinema ou como teatro.

O Pátio de Santa Cruz, além de ser palco para desfiles de clubes e troças carnavalescas, numa época do ano era sede de uma "festa de rua", com carrossel, roda-gigante, balanço de barco, tiro ao alvo, pescaria e outras brincadeiras características deste tipo de evento. Os rapazes se divertiam também mandando recados para as garotas, hoje torpedos, através do sistema de rádio com alto-falante. Uma das mensagens era: "Moça do vestido amarelo, como as rosas abrem suas pétalas para receberem o orvalho da noite, abra o seu coração para receber esta linda melodia - de alguém para alguém". A música era habitualmente de fossa e a moça para quem se dirigia o recado ficava uma fera, para enganar, pois no íntimo gostava de ser notada.

A Praça Maciel Pinheiro era parte integrante das atividades do bairro. Era lá que havia uma sinuca e uma lanchonete na esquina da Rua da Imperatriz. O primeiro hotel luxuoso da cidade, o São Domingos, foi inaugurado ao lado de um mais antigo, o Hotel América, de propriedade de um português, pai de umas amigas da minha época de adolescência, com quem tenho, ainda hoje, a mesma amizade: Leonor, colega da UFPE, e Tânia, sua irmã, sempre presentes em minha memória, o seu irmão mora em Portugal e Norma, a outra irmã, se encantou para tristeza de todos. O primeiro bar sofisticado e a boate da moda eram localizados no São Domingos.

A Sorveteria Xaxá foi pioneira como local de convivência do bairro, logo assumido pela Fri-Sabor. Mas comprava-se também picolé na carrocinha de Charuto, fabricado no mercado da Boa Vista e vendido no Colégio Salesiano. Na Casa de Detenção, hoje Casa da Cultura, compravam-se botões de chifre para fazer parte dos nossos times, nos jogos de futebol de botão.

Os cabeleireiros do bairro, chamados barbeiros, eram Manoel e Félix, cujos salões eram localizados nas Ruas Rosário da Boa Vista e Aragão. Na Avenida Manoel Borba e nas ruas próximas, localizavam-se os grandes casarões, de propriedade de Oscar Coutinho, Arnaldo Marques, F. Pessoa de Queiroz, Adelmar da Costa Carvalho, entre outros.

Na Ilha do Leite, quando nos mudamos para lá, após a construção da nossa casa, existiam apenas umas dez moradias. O restante da área era composto de mato e mangue, onde pescávamos caranguejos. A margem do Rio Capibaribe era chamada de prainha, onde jogávamos futebol, um verdadeiro campo de peladas.

A rua que morávamos se denominou Minas Gerais, em homenagem ao seu primeiro morador, um mineiro, que se radicou no Recife. A pracinha, como nós chamávamos a Praça Miguel de Cervantes, tinha uma capelinha, onde as famílias se revezavam para organizar as noites do mês de maio. Tinha também um casebre onde morava o único ex-ladrão da área, perigoso numa época, assim diziam, mas protetor após sua aposentadoria. Eram também personagens do bairro os guardas-noturnos, com seus apitos estridentes.

Todos se conheciam na Ilha do Leite e se tornavam rapidamente amigos, divididos apenas por faixas etárias. O bom relacionamento das famílias facilitava a aproximação dos mais jovens, tanto nas brincadeiras como nas farras. Tínhamos tantos amigos que se torna difícil enumerá-los, sem incorrer em omissões. Era como uma pequena aldeia. Juntavam-se a esta amizade fraterna os que habitavam nas proximidades, nas Ruas Joaquim de Brito, Visconde de Goiana, Marques de Amorim, José de Alencar, Jasmim e Prazeres, entre outras.

Assim era a vida na Boa Vista. Ao recordarmos, notamos o quanto nós éramos felizes.

Publicado na edição do dia 26 de fevereiro de 2010 do Jornal do Commercio
Date of last modification: 31/10/2016, 10:28

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