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“A gente vê a mudança na cobertura da Atenção Básica de Caruaru, na redução da mortalidade infantil e materna, no número de atendimentos”, diz médico e professor Rodrigo Cariri
Curso de Medicina do Centro Acadêmico do Agreste amplia interiorização da formação e reforça o SUS
Por Anderson Lima
Fotos: Raul Holanda
Analisar o resultado da aplicação de políticas públicas voltadas para a saúde e a educação e como elas contribuíram para a construção do perfil do curso de Medicina do Centro Acadêmico do Agreste (CAA) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Esse foi o objetivo da tese de doutorado “Expansão e interiorização do ensino superior e a formação médica para o SUS: o caso do curso de Medicina de Caruaru”, de autoria do médico e professor do Núcleo de Ciências da Vida (NCV) do CAA/UFPE Rodrigo Cariri, que também participou da criação desse curso, além de ter sido seu primeiro coordenador. O trabalho, apresentado no Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública do Instituto Aggeu Magalhães (Fiocruz Pernambuco), em dezembro de 2022, resultou da análise das políticas de expansão e interiorização do ensino superior e de provimento e formação de médicos para o Sistema Único de Saúde (SUS).
Para tanto, Cariri analisou documentos e realizou entrevistas e grupos focais com dirigentes da UFPE e de Caruaru e com professores do curso de Medicina do CAA. Um achado inesperado revelado pela pesquisa veio justamente do depoimento de alguns dos professores ouvidos por Cariri: o de que o curso de Medicina seria responsável por gerar uma significativa mudança social na região ao permitir o acesso de alunos de baixa renda, negros, indígenas e oriundos do interior do estado. “O fenômeno precisa ser melhor estudado para que seja possível caracterizar essa mudança e analisar suas consequências em longo prazo”, avalia o professor. “É preciso analisar se o acesso desses estudantes a um curso planejado e estruturado para enfrentar desigualdades sociais e os novos determinantes sociais que afetam esses grupos vão produzir médicas e médicos mais conscientes e comprometidos com o enfrentamento a esses determinantes”, completa.
O curso também contribuiu para o provimento de especialistas em áreas historicamente deficitárias no Agreste pernambucano – Atenção Básica, Infectologia, Psiquiatria, Obstetrícia, entre outras –, graças às discussões feitas com gestores locais, ainda no processo de elaboração da graduação, para a definição dos perfis dos professores que seriam admitidos via concurso público para compor o atual quadro de docentes. A tese ressaltou ainda o papel de destaque que o curso alcançou nacionalmente ao ter atuado na viabilização do Mais Médicos – programa federal lançado, em 2013, no primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff – a partir da elaboração do curso de formação oferecido aos profissionais cubanos recém-chegados e da capacitação realizada ainda em Cuba, além do acolhimento e supervisão dos mais de 300 médicos que vieram para Pernambuco.
Na entrevista a seguir, concedida na sede do Serviço Integrado de Saúde (SIS) da UFPE, Rodrigo Cariri, atualmente coordenador-geral de Atenção Especializada no Ministério da Saúde, em Brasília, fala sobre a criação do curso de Medicina da UFPE em Caruaru, como ele vem transformando a realidade da saúde pública no interior do estado e a respeito do retorno do programa Mais Médicos e seus desdobramentos locais, entre outros pontos.
A tese mostra como a expansão e a interiorização do ensino superior brasileiro e a formação médica voltada para o SUS contribuíram para a construção do perfil do curso de Medicina da UFPE em Caruaru. De que forma esses pilares ajudaram na criação de um curso que prioriza a formação de médicos para atender as necessidades da população do interior?
É importante situar o caso analisado na pesquisa, resultado de um conjunto de políticas que vêm se acumulando desde a redemocratização. Vários direitos foram assegurados na Constituição, e eles passaram a ser ordenados nas chamadas Leis Ordinárias ou Orgânicas. Na década de 1990, começa um movimento de municipalização do SUS e, em 1994, é feita uma primeira Política Nacional de Atenção Básica no Brasil, em que se busca uma desospitalização e um modelo em que se atenda as pessoas conforme as necessidades delas. Essa expansão da rede de Atenção Básica no Brasil é feita de forma contínua até praticamente 2010, porque ainda tinha uma reserva de profissionais no mercado que puderam ser remanejados, mesmo que com certa dificuldade. Então, no primeiro Governo Dilma [2011-2014], a gente experimenta uma proposta chamada Provab, de pontuação na prova de residência para quem passasse um tempo na Atenção Básica. Esse conjunto de medidas, que é a cara da educação superior do século XXI no Brasil, também produziu uma expansão do ensino prioritariamente privada, e precária, e não uma expansão universitária com pesquisa e solidez. Mas que também não foi suficiente para responder às demandas da Medicina. O plano desenhado para o Mais Médicos, em 2013, previa a contratação de brasileiros em primeiro lugar. Depois, de países que tinham mais médicos que o Brasil e só depois de cubanos que pudessem vir ao País para atender emergencialmente as regiões onde não havia médicos brasileiros. Também houve uma reforma das diretrizes curriculares e uma expansão dos cursos de Medicina públicos. Foram 30 cursos de Medicina abertos no Brasil com o fomento específico do programa Mais Médicos para expandir a formação em áreas onde não havia cursos de Medicina. Caruaru é um caso. A pesquisa analisa o nascimento do curso nesse contexto de políticas públicas da educação e da saúde. E quando elas se encontram, em 2013, e viram uma política interministerial potente, a gente vê uma aceleração da transformação dessa mudança. Hoje já temos os parâmetros de distribuição de médicos por habitante e de cursos por região do País. Essas iniciativas cumpriram seu papel e hoje, dez anos depois, a gente relança o programa Mais Médicos. A priori, somente com brasileiros, mas se espera que a gente retome a cobertura do território nacional e volte a crescer porque ainda é preciso expandir a Atenção Básica. E muito! Metade da população do Recife, por exemplo, não tem acesso aos atendimentos básicos.
O fato de o curso ter essa ligação forte com o Mais Médicos faz com que os estudantes sejam mais integrados no atendimento às questões básicas de saúde da população?
Isso não foi medido pelo estudo, mas há trabalhos comparativos em escala nacional que eu examinei na tese e estão nas referências. O que se nota é uma diferença no modo de enxergar os problemas de saúde e na habilidade em trabalhar em equipe, em ter maturidade emocional. Porque esses cursos mais recentes têm uma metodologia de ensino diferente, centrada no aluno e no sistema de saúde. Por exemplo, em Caruaru, há um módulo longitudinal oferecido durante quatro anos de curso regular que é um projeto integrado de práticas de ensino na comunidade. No primeiro ano de curso, os alunos já estão tendo contato com as pessoas. Isso produz um amadurecimento, inclusive emocional, diferente de quem está apenas estudando em cadáver e vendo reação química em laboratório, pois é preciso tempo para compreender melhor e dar segurança para se conduzir um encontro clínico e fazer dele uma oportunidade melhor de aprendizado quando se chega ao final do curso. E quando esse estudante chega no momento do estágio, ele vai estar melhor preparado do ponto de vista relacional, e não apenas do ponto de vista técnico ou de conhecimento cognitivo, e vai conseguir aproveitar melhor esse aprendizado.
De que forma o retorno do Mais Médicos pode ser positivo para a continuidade e o fortalecimento do trabalho de formação de agentes de transformação do interior do estado?
A gente terá um teste agora, em 2023, com a retomada dos incentivos financeiros para o provimento do programa. Os cursos estão estruturados e funcionando, são muito bem avaliados, têm uma importância regional enorme e devem continuar contribuindo para o desenvolvimento da Atenção Básica e para as políticas de provimento dela com tudo o que compõe seu ecossistema de formação: residência, especialização, mestrado e doutorado. Esse setor deve continuar em expansão com a retomada da política e com a volta da razão. Mas eu entendo, e essa é uma projeção a partir de meu ponto de vista, que vai haver uma demanda muito grande do Governo para que a gente se debruce sobre a Atenção Hospitalar Especializada. O que é natural. À medida que se desenvolve a Atenção Básica e a Atenção Primária, e que ela está bem estruturada, chega o momento de cuidar do hospital. Temos um passivo hospitalar muito grande no Brasil. São gastos dois terços do orçamento da saúde com a Atenção Especializada no País e não se têm os resultados que a Atenção Básica dá com apenas um terço desse valor, porque a Atenção Básica mudou o modo de agir, de cuidar e de fazer saúde, algo a que o hospital ainda não se adaptou.
Na tese, o senhor reproduz a fala de alguns professores que dizem como o acesso ao curso de Medicina por alunos de escolas públicas, negros e do interior tem gerado uma mudança social significativa na região. Como isso pode levar a uma nova realidade na saúde pública no interior do estado?
Existe um consenso internacional, estabelecido a partir de pesquisas de evidências factuais, que testaram programas em diversos lugares do mundo e examinaram seus resultados. De acordo com esses estudos, as políticas públicas que mais deram resultado são na área de formação, remuneração, de apoio ao médico e na área de regulação. O Mais Médicos conseguiu trabalhar os quatro eixos. Mas, dentro do eixo da formação, a evidência mais forte examinada no mundo inteiro foi sintetizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “choose the right student”, escolha o estudante certo. O que isso significa é que, para uma determinada função e perfil, não é feita uma seleção meramente por cognição ou por pontos. Um exemplo é a experiência brasileira, de acesso por cota social, racial e étnica, que mostrou um impacto muito grande na educação superior em geral e também na Medicina. E a gente acredita que isso vai ter um impacto muito forte, pois o que faz a diferença mesmo é o estudante cotista. É ele que muda, desequilibra as relações e é onde se vê a maior potência do grupo, mas a gente ainda precisa aferir melhor.
A primeira turma de Medicina de Caruaru se formou em 2020. Já é possível falar em redução de desigualdades e de indicadores epidemiológicos no interior de Pernambuco provocada pela entrada desses profissionais na rede de saúde local?
A gente mediu essa mudança de cenário na tese. A gente vê a mudança na cobertura da Atenção Básica de Caruaru, na redução da mortalidade infantil e materna, no número de atendimentos oferecidos na região. A cidade é outra. Isso foi uma questão enfrentada como parte do projeto político-pedagógico da graduação. Quando o curso abriu, em 2014, criamos o primeiro programa de residência médica porque a expansão da residência médica concomitante com a da graduação fazia parte dessa política. Em 2013, o Mais Médicos propôs que a gente universalizasse o acesso à residência médica no Brasil, que todos os médicos no Brasil poderiam e deveriam fazer residência, e disciplinou que essas residências seriam iniciadas, obrigatoriamente, pela Medicina da Família. Esse seria um novo mecanismo de provimento que deveria funcionar a partir de 2018, mas foi suspenso pelo Governo que estava no poder [Michel Temer, 2016 a 2018]. Mas, ainda em 2014, a gente iniciou a abertura de programas de residência e começou a ter outros movimentos migratórios, com pessoas que saíam do Recife para fazer residência na UFPE de Caruaru. Essas pessoas se tornaram médicas da rede e professoras da Universidade. Além disso, o impacto mais perceptível foi a chegada dos cubanos. A gente chegou a ter 370 médicos na região de Caruaru, Garanhuns e Arcoverde, e a UFPE era responsável pela supervisão deles, que mudaram completamente o panorama de saúde desses municípios mais longínquos, menores e com maior dificuldade de garantia de médicos. Eram mais de 70 municípios pelo programa Mais Médicos, cuja supervisão pedagógica estava sendo viabilizada pela Universidade, e a referência para a região inteira era o curso de Caruaru. O impacto social foi muito perceptível, e a sociedade associa esse conjunto de políticas ao curso. E quando veio a pandemia, para onde o gestor correu para pensar soluções e mobilizar mão de obra para organizar os serviços de Caruaru? Para a Universidade, pois ela é uma parceira estratégica do SUS reconhecida pelos gestores. Não se tratava de um projeto apenas de formar pessoas, mas de construção do sistema de saúde.
Poucos meses após os primeiros estudantes colarem grau, teve início a pandemia de covid-19. Ao mesmo tempo em que testou os limites das pessoas, a pandemia também mostrou a importância do sistema público de saúde. Em que medida o SUS saiu mais forte desse momento?
O SUS saiu mais forte, sobretudo, na classe média e entre segmentos da economia mais liberal. Para a população que é usuária do SUS, a percepção não mudou muito, porque ela já não é tão romantizada. Mas a pandemia já era prevista em modelos teóricos, apesar de pouca gente saber quando e de que forma aconteceria. E os projetos pedagógicos mais contemporâneos já começaram a dar conta desse novo modo. Então, o papel da universidade e do curso de Medicina não é mais o de fazer com que se saiba tudo sobre alguma área da Medicina, porque isso é uma condição muito passageira e rápida. É preciso se adaptar, compreender e desenvolver soluções rapidamente. Esse é o profissional que as reformas curriculares que começaram no final da década de 1990 já miravam. É preciso saber fazer a pergunta e, sobretudo, saber ser uma pessoa nesse mundo. Então, de certa forma, a gente já estava preparado quando a pandemia chegou, pois o curso de Caruaru nasceu híbrido. Ele já tinha um ambiente virtual de aprendizado totalmente integrado às atividades do curso, previsto no projeto pedagógico, e que dava sustentação ao ensino a distância. E como a gente estava muito integrado ao SUS de Caruaru, a gente não teve determinados problemas como os que ocorreram aqui no Recife. Essas foram diferenças que a gente pôde notar durante a pandemia. E a relação com o sistema básico de saúde foi nessa medida. Para qualquer profissional de saúde, ter vivido criticamente a pandemia foi uma experiência única, e esses meninos estavam mais preparados para aproveitar essa situação como um aprendizado. Isso foi enriquecedor.
Mais informações
Professor Rodrigo Cariri
rodrigo.cariri@ufpe.br